Um terremoto, viagens a um país distante e tentativas frustradas foram algumas das dificuldades enfrentadas pelo médico Eliziário Barbosa de Siqueira Júnior, de 40 anos, para realizar o sonho de ter um filho. Eliziário é casado com o psicólogo e estudante de medicina Ricardo Purini Pelegrino de Siqueira, de 33. Eles recorreram à reprodução assistida para terem o pequeno Eliziário Neto, que hoje está com 2,9 anos. E, para isso, chegaram a viajar para o Nepal, país onde o procedimento era autorizado.
Após várias tentativas sem sucesso, o sonho acabou se concretizando aqui mesmo, no Brasil, onde, desde 2017, a regulamentação permite que casais homoafetivos masculinos ou femininos tenham direito à reprodução assistida. Não há números fechados, mas especialistas dizem que, desde então, a procura pelo procedimento vem crescendo entre os casais formados por pessoas do mesmo sexo.
Entretanto, nem todos os países dão essa garantia. O assunto ganhou força porque a França discute novo projeto de bioética. Reconhecido por sua diversidade cultural, o país vem encontrando resistência na aprovação da pauta. Alas conservadoras estão realizando manifestações contra as mudanças propostas, entre elas a que prevê o direito à reprodução assistida por mulheres homossexuais ou solteiras.
Conforme a Rádio França Internacional (RFI), em 19 de janeiro uma manifestação organizada por católicos conservadores reuniu cerca de 25 mil pessoas em Paris. O grupo é contra o direito à reprodução assistida por mulheres homossexuais e solteiras, questiona as novas formas de organização familiar e considera a presença do pai essencial.
Ainda conforme a RFI, os conservadores consideram que, se aprovada, a lei incentivará a legalização das barrigas de aluguel, utilizadas no caso da reprodução assistida para casais homossexuais masculinos, o que não está sendo discutido neste momento.
No Brasil, desde 2017, norma garante a reprodução assistida a casais de homossexuais masculinos e femininos. No caso das mulheres solteiras, essa garantia é anterior a 2017. Não é permitida a barriga de aluguel, ou seja, cobrar para gestar a criança para o casal homossexual masculino. Mas é permitido o útero solidário – a mulher vai ceder o útero temporariamente, sem ter vantagem financeira.
Especialista em reprodução assistida da Clínica Vilara, Marco Melo, explica que o procedimento da reprodução assistida no Brasil não é contemplada por legislação, mas por regulamentação ética elaborada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). A cada três anos é feita uma reunião para discutir revisões necessárias, quando é publicada uma nova edição.
Ele explica que, até 2017, havia uma brecha na regulamentação, que acabava permitindo a reprodução assistida para casais homoafetivos femininos. Constava do texto a norma que autorizava o profissional a realizar o procedimento em paciente solteira com desejo de gravidez.
Desde 2017, o texto já fala sobre o tratamento homoafetivo como tal, o que levou a um aumento na busca desses casais pelo tratamento. “É direito do cidadão, ainda que não esteja formando um casal convencional, ou seja, nos moldes tradicionais, constituir família. É uma contribuição para o Direito Civil a democratização do tratamento. Não cabe a nós ou ao Estado definir quem pode ou não pode engravidar. É um grande avanço”, diz o especialista.
O médico Eliziário Barbosa Júnior considera importante a divulgação de informações sobre o assunto. Ele disse que chegou a recorrer a outro país para tentar a reprodução, inclusive devido à falta de informação. O médico explica que a norma brasileira considera que o útero solidário, ou seja, a mulher que vai gestar a criança para o casal homossexual masculino, seja preferencialmente parente de um dos membros do casal. “Não tínhamos essa pessoa. E por isso, fomos para o Nepal”, diz. Naquele país, era permitida a barriga de aluguel.
Enquanto passavam pelo processo, o país asiático chegou a ser atingido por um terremoto, sendo que o material recolhido para a fertilização se perdeu. No total, no exterior, foram seis tentativas frustradas.
Mesmo diante das dificuldades, Eliziário Barbosa Júnior e o companheiro não desistiram. E acabaram descobrindo que uma mulher que não fosse parente deles poderia ser o útero solidário, aqui no Brasil, sendo necessário passar por avaliação e autorização do Conselho Regional de Medicina (CRM).
“Conseguimos fazer o processo com tranquilidade no Brasil, inclusive registrar nosso filho. Na certidão de nascimento dele, os nomes dos pais são o meu e do meu companheiro”, comemora. Eliziário e o marido, que moram no interior de São Paulo, planejam agora um segundo filho. “Na primeira vez, o sêmen utilizado foi o meu. Agora, será o do Ricardo”, diz o médico.
A norma brasileira indica que, no caso do casal homossexual masculino, a mulher que será o chamado útero solidário, ou seja, que gestará a criança, deve ser parente em até quarto grau de um dos pais. Casos especiais necessitam de avaliação e aprovação do CRM.
Segundo o ginecologista e obstetra Selmo Geber, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em reprodução humana na Clínica Origen e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA), é importante que o assunto seja discutido, normalizado.
“É importante mostrar que o procedimento é possível, ético, normal e legal”, diz. “O texto brasileiro é bastante correto. Mostra maturidade. Renovações acontecem periodicamente. Não é necessário ser uma mulher casada nem ser um casal formado por pessoas de sexos diferentes para buscar a reprodução assistida. O procedimento, no país, já é permitido para mulheres solteiras e casais homoafetivos femininos e masculinos”, completa.
Ele informa que a procura dos casais homoafetivos pela reprodução assistida vem crescendo. No caso de mulheres solteiras e de união entre mulheres, esse aumento vem ocorrendo há mais tempo. No caso de casal homoafetivo masculino, a busca começou mais esporádica e agora vem se ampliando de forma mais consistente. “No ano passado, tivemos um casal homoafetivo masculino que teve gêmeos. É uma grande comemoração. Sempre mandam fotos para nós”, diz.
As estatísticas sobre a procura de casais homoafetivos pela reprodução assistida ainda são incipientes. Na clínica Vilara, segundo Marco Melo, os casais homoafetivos respondem por cerca de 5% do total de atendimento. Segundo a avaliação do médico, esse número, aparentemente, pode ser baixo, mas mostra que a procura vem aumentando, pois partiu do zero.
Para Marco Melo, as discussões na França mostram uma postura na contramão da evolução. “Essa discussão na França surpreende por acontecer num país com grande diversidade cultural e com acesso aos tratamentos. Vai na contramão da evolução. Às vezes a gente vê que a ciência vai mais rápido que a lei. Ter esse tipo de discussão em 2020, me parece muito ruim. Mostra puritanismo por parte das autoridades”, diz.
Montanha-russa de emoções
Eliziário Júnior é médico ginecologista e obstetra. Foi ele quem fez o parto do próprio filho – uma das grandes emoções que envolveu o nascimento de Eliziário Neto. O casal conta que se conheceram em 2011 e se casaram em 2014. Nesse mesmo ano, após assistirem a uma reportagem sobre um casal homossexual que havia recorrido à reprodução assistida para ter um filho, eles perceberam que era possível realizar o sonho de completar a família. A partir daí, começaram a buscar informações sobre como deveriam agir.
Em meio a tantas dificuldades e depois de várias tentativas, uma prima de Eliziário Júnior disse que poderia ser o útero solidário. “Não imaginávamos que era uma oferta real”. Ainda assim, o casal ligou para ela. Após consultas à família, inclusive aos três filhos, ela topou! A primeira tentativa falhou, mas na segunda vez tudo deu certo.
Como era uma prima distante, a mulher não atendia à exigência da norma nacional de que o útero solidário seja preferencialmente parente de até quarto grau de um dos membros do casal. O caso passou pelas avaliações necessárias, sendo aprovado o procedimento.
Assim, após oito tentativas, o pequeno Eliziário foi gerado, numa montanha-russa de emoções como o pai Eliziário Júnior descreve. “Gratidão a Deus por permitir essa dádiva de sermos pais”, agradece o médico em relato pessoal que compartilha para contar a sua história.
TÉCNICAS
Veja abaixo as técnicas usadas para reprodução assistida em casais homossexuais:
Casal homossexual feminino
Para o casal feminino homoafetivo há duas possibilidades:
– Uma é a inseminação artificial. Elege-se uma das mulheres do casal, estimula sua ovulação e, no período fértil, é feita a inseminação com sêmen de banco.
– A outra possibilidade é a fertilização in vitro. Elege-se a que vai gestar. É feita a captação de óvulos com punção. Faz-se a fertilização in vitro com sêmen de banco. Quanto o embrião está pronto, é colocado no útero. Nesse caso, uma das mulheres pode doar os óvulos e a outra gestar, havendo a participação do casal na gravidez.
Casal homossexual masculino
A técnica é fertilização in vitro. Para o casal homoafetivo masculino, a complexidade é maior, pois é necessário o útero de substituição e o óvulo doado.
O casal elege qual será o doador do sêmen, faz-se fertilização com óvulo doado. O embrião será gestado pela mulher que vai ceder o útero temporariamente.